MARIA MAFALDA VIANA
V. G. M., a 27 de Abril de 2020
I.
Se bem me lembro, mais do que uma pessoa se terá referido a Vasco Graça Moura como um “Príncipe das Letras”. Tenho mais presente a última vez em que o li, num artigo de Maria Alzira Seixo, cujo título integrava esta expressão e foi publicado no Verão de 2013, portanto já a menos de um ano da morte do Príncipe em 27 de Abril de 2014.
Para quem tenha algum conhecimento de Estudos Camonianos, a expressão aparece ainda mais elogiosa do que a sua singeleza, por si só, já faz supor. De facto, ela situa V. G. M. ao lado do “Príncipe dos Poetas”, a expressão usada por Manuel de Faria e Sousa, o mui engenhoso comentador de Camões do século XVII, nas suas obras monumentais de comentário à poesia camoniana (Rimas Varias...; Lusiadas...). Além de elogiosa, ela é, a meu ver, porventura involuntariamente, bem certeira na relação que faz. Na verdade, V. G. M. até se ajusta como uma luva aos quatro últimos versos da penúltima estância d’ Os Lusíadas (X, 154, 5-8), e que eram mesmo dos seus preferidos:
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
Não cabe na brevidade desta nota argumentar e explicitar largamente o que requer outro espaço para ser demonstrado, mas que, em todo o caso, é talvez também, de algum modo, perceptível de forma imediata. Logo à partida, o “honesto estudo” dispensa qualquer demonstração... A longa experiência parece-me inegável. Em termos profissionais, é notório o que foi a conjugação de uma uita efectivamente actiua (sobretudo na cultura, mas não só) com o seu “honesto estudo”, o que, mutatis mutandis, vale para a expressão conexa uita contemplatiua. Na harmonia com que ambas se entrelaçam, eu diria que o poeta muito se assemelha a uma figura cuja soberba cadência da melhor frase latina eu estou certa de que muito admiraria. Refiro-me a Cícero, curiosamente nascido também ele num dia 3 de Janeiro (106 a. C.). Lembro apenas os seus últimos tempos no CCB (2012-2014; a programação da sua administração estendeu-se a 2015), onde foi notório como o seu projecto Literatura e Humanidades foi tão acarinhado pelo público que, de facto (as inscrições ficavam quase sempre esgotadas), enchia as salas do edifício do Centro de Reuniões a ouvir os programas dos vários Ciclos que promoveu no âmbito das Humanidades. Ali fomentou aquilo a que chegou a referir- -se como uma “alegria do conhecimento”[1]. E alegria, julgo que poderei afirmá-lo sem errar, foi então também a sua, apesar da dureza e áspera dificuldade em que a vida se lhe apresentou nos seus últimos tempos. E podia ainda recuar no tempo, a 1979-1989 (IN-CM), e seguir por aí fora, pois não foi pouca a sua actividade…
Mas no âmbito da “longa experiência” cabe ainda sobretudo quanto diz respeito ao muito que viu e conheceu, às muitas partes por onde andou, o muito que experimentou, um aspecto em que o poeta bem poderia actualizar os versos iniciais da Odisseia de Homero, que apontam para uma conexão entre a múltipla errância, o muito sofrimento de Ulisses e as muitas cidades e os espíritos dos homens que aí conheceu. Mais modernamente, poderíamos compará--lo a Camilo Castelo Branco, cuja vida atribulada não terá sido menos inspiradora da sua veia narrativa do que, em tempos mais antigos, havia sido a múltipla errância de Ulisses, um exímio narrador, nosso primeiro mestre na arte da verosimilhança e que, de várias formas, a narrativa da Odisseia compara a um aedo. Quanto a V. G. M., este sentido da experiência fica claro no engenho enérgico e na facilidade da sua narrativa, de correr imparável, irresistível, por um dédalo de caminhos que vai sulcando em tropel, com as peripécias e acontecimentos mais inesperados ou as mais variadas figuras, em cenários tão diversos quanto podem ser o das invasões napoleónicas ou os mais inacreditáveis em torno das andanças de um agente da PIDE…
Tudo isto sempre com uma prosa igualmente inesperada formando vielas, por vezes mesmo becos, que se prolongam imprevisíveis a partir de um caminho principal que vai desenhando sem parar e onde se vai desdobrando, prazenteira, a sua segurança criadora, poderosamente sustentada num fundo saber da língua portuguesa, a partir da qual projecta um sentido fino, clarividente, muitas vezes jocoso e provocador, do verdadeiramente novo. Pego em Naufrágio de Sepúlveda com o intuito de escolher algumas linhas a exemplificar, mas a tarefa revela-se quase impossível. Onde cortar? Em todo o caso, fica uma espreitadela:
..., por causa do naufrágio, uma verdadeira hipótese metafórica, resmungaria o Guilherme Carneiro, como se se tratasse de uma doença venérea, coisas que, como é evidente, nunca me passaram pela cabeça, nem de perto nem de longe, nem a metáfora nem a doença venérea, e eu tenho mais do que fazer do que pensar nos críticos, ou mesmo no público, quando escrevo seja o que for, poesia, prosa ou ensaio, ou uma combinação destas modalidades, nem pertenço ou quero pertencer a nenhum instituto de socorros a náufragos, e de naufrágios tem escrito muito boa gente, é uma autêntica síndroma do ir a pique, de Homero a Enzensberger, de Camões a Júlio Verne e a Hopkins, muita gente que às vezes até nunca pendurou as roupas húmidas no templo ou pintou como pôde o seu Radeau de la Méduse, ou...[2]
Decido-me pela citação, mesmo com corte, pensando que nada substitui a sua própria voz. Mas fica uma amostra muito pequena do que é este sujeito que em finais dos anos 80 persegue os indícios vagos na sua memória sobre certo Manuel de Sousa Sepúlveda, um banqueiro que se afunda a menos de um mês do 25 de Abril. O caminho da sua prosa – onde a todo o momento dialoga com um certo Estêvão Malarmado, pseudónimo de Guilherme Carneiro (e os nomes têm também que se lhes diga…) – ramifica-se em toda uma panóplia de questões e peripécias diversificadas, como as afirmações de José Mattoso sobre a identidade nacional, em entrevista ao Expresso, mulheres, cenas de porrada (aliás um topos recorrente na sua obra...) e de discussões parlamentares, o Caeiro, edições de Pessoa, a detestável da Ática, a cópia do retrato de Camões por Fernão Gomes – “aquela que tem umas marcas de tiras a colar um rasgão” –, encaixada na referência a uma hipótese de estada do Sepúlveda no Brasil, onde após o 25 de Abril poderia, “como muitíssimo boa gente”, ter ido passar uma temporada, “levando jóias e pratas para vender” e onde ele sabia que o retrato estivera à venda...
Dispenso-me de prosseguir. Era um estilo desassombrado, interpelador do passado (e do presente!) e, simultaneamente, uma muito boa parcela da literatura e das outras artes do Ocidente, num diálogo engenhoso e seguro com figuras grandes e que eram também os seus amigos.
Poder-se-á pensar que há nisto alguma pose, que tanta interpelação fomenta uma obra artificial onde simplesmente se exibe erudição[3]. Mas não é assim. Aí se revela justamente o seu engenho. Todos estes mille foyers de la culture, na organização da escrita de VGM, constituem verdadeiramente uma linguagem sua, autêntica, um estilo onde se combina uma memória milenar, e isto não apenas porque a língua que falamos e em que escrevemos já nos antecede em pensamento; digo-o no sentido em que as múltiplas leituras acumuladas e organizadas no seu espírito naturalmente confluem na sua escrita formando uma coerência única. E isto, evidentemente, não exclui a contradição, que é o pulsar de uma escrita literária na exacta medida em que contraditório é também o espírito humano, cuja inquietação se desdobra tantas vezes com o movimento de uma tensão de pólos opostos. Falo, pois, de uma coerência no sentido de um pensar desdobrado na originalidade única de um sentido peculiar do novo que se gera no seu espírito e que é também um estilo – un “style” qui – je pourrais dire ici – “est lui--même”.
Nada disto, porém, é impedimento a que nos surpreenda com versos que, de tão simples e de tal lisura, por mais vezes que os repitamos na memória, nos deixam sempre … desarmados. Vários poemas podem exemplificar o que digo: quando eu morrer murmura esta canção é um poema raramente delicado e que, aliás, se tornou bem conhecido. Mas há outros. Gostaria especialmente de evocar dia de feira, um poema inédito, publicado na antologia V. G. M., visto da margem sul do rio o porto (Porto, Modo de Ler, 2012, p. 75), cuja última estrofe nos esmaga com o peso da sua singeleza, pela forma como nela se combina tão bem a arte do decassílabo heróico bem sonante aliada à simplicidade e ao despojamento destes versos conversados. Depois de uma estrofe enumerativa de tudo quanto se possa imaginar e efectivamente encontrar numa feira, onde as “charangas” rimam com as “tangas”, o “muito pano para mangas”, as “bugigangas” e as “zangas”, os “coscorões” com os “colchões” e os “figurões” ou a “criançada” com a “limonada” e a “passarada”, “e tantas outras coisas, tantas mais….”, é este o remate:
bem quis que a feira fosse um labirinto
para entre tanta gente estarmos sós
e andarmos de mãos dadas no recinto
a evocar o porto, o douro a foz,
como era a vida e quem éramos nós,
com a feira no fundo por contraste.
eu cá por mim gostei. também gostaste?
II.
E o artesão, que valorizaria ele da sua própria poesia? Não poderia, nem pretendo, deitar-me a adivinhar. Numa das últimas entrevistas que deu, confrontado com o amor enquanto fonte de inspiração importante, o poeta responde:
Fonte de inspiração e tema de poemas importantes como diana no banho[4].
A resposta vem, tanto quanto isso é perceptível numa entrevista escrita, sem hesitação, directa e sem enleios. Para quem conheça razoavelmente a sua obra, esta escolha, conquanto não seja inteiramente surpreendente, é talvez algo inesperada. E não o digo pelo tema (claro que não) ou pela graça, a leveza da situação peculiar em que o sujeito se apresenta, mas por certa singeleza do poema, libertos que aparentemente são os seus versos de qualquer interpelação literária ou de outra manifestação artística ou cultural que frequentemente, entre outros aspectos, constituem a língua de V. G. M. e são portanto uma espécie de barro que ele modela e fazem um estilo que, eu diria, tantas vezes cultivou to the happy few.
Das razões que teria em mente ao dar aquela resposta, não poderíamos saber. Chegámos tarde. A entrevista prossegue em sentido completamente diverso. Atrever-me-ia, em todo o caso, e julgo que sem cair na adivinhação – de resto, uma das faculdades de Apolo, portanto mais dos possíveis de quem é poeta, e não para nós –, a apontar um dado que poderá pesar na sua valorização deste poema. De facto, ele é também essa singeleza e lisura, seja pelo cenário quotidiano, onde aparecem os azulejos do quarto de banho, o brilho da espuma, seja até pela medida dos seus versos – de quatro sílabas! –, dimensão do poema em que ele também é para ser lido e não é isento de graça. No entanto, há um desses “mil focos da cultura” que, sobre a sua já clara claridade, ainda o ilumina e, a meu ver, faz dele, simultaneamente, um poema de rara e sofisticada erudição. E a graça que, à partida ele já tem, refina-se e adensa-se no seu sentido.
Com diana no banho, o poeta recria ainda, no século XX-XXI, o mito de Actéon, parecendo mesmo inscrever esta sua composição num caminho temático e de problematização literária e ensaística que integra aquela figura mítica, e em cujo traçado a literatura e as artes plásticas do Renascimento têm uma presença decisiva.
Numa altura em que as Metamorfoses de Ovídio continuavam a marcar presença entre as leituras da elite cultural europeia, e até porventura com mais força, compreende-se que um mito como o de Actéon, que é justamente o próprio Desejo, tenha uma presença tão segura na cultura do Renascimento. Por si só, o Diana e Actéon de Ticiano (uma das poesie, para Filipe II) irradia sobeja claridade pela largueza e à vontade do movimento com que o herói, ao levantar o braço a desocultar Diana, com o afastar do pano, parece até saudar as raparigas e, como isso, deixar mesmo desarmada a deusa e a tradicional fúria com que no mito castiga o herói caçador (metamorfoseando-o em veado e fazendo-o ser devorado pelos próprios cães), e cuja acção ficaria assim mais inibida. De facto, o Actéon de Ticiano apresenta-se com um passo de tal modo seguro que dificilmente acreditaríamos pudesse alguma vez vir a sofrer o castigo subsequente da deusa, como se veria posteriormente na Morte de Actéon. Na verdade, a segunda composição de Ticiano não desvaloriza a afirmação que, por si só, constitui Diana e Actéon e, pela minha sensibilidade, só supostamente apresenta a surpresa do herói…
Há outras obras importantes. Aliás, a este tempo, o tema da nudez (envolvendo naturalmente outros mitos) parecia ter a preferência de muitos artistas, de tão frequente que era, até também pela importância que então assume o estudo do corpo humano e a sua representação.
Mas só a obra de Ticiano é mais do que suficiente para mostrar como este mito está sobejamente entranhado na cultura do Renascimento, bem como as metamorfoses por que a esse tempo passara. O à vontade com que este Actéon nos interpela ao deparar, sponte sua, com Diana indicia a familiaridade do mito entre os círculos artísticos europeus. Na versão de Ovídio, porém, a que mais se disseminou e está na memória dos artistas, é muito claro que Actéon avista Diana não por sua vontade, mas porque isso lhe acontece, sem que ele tenha sido tido nem achado. O destino conduzira-o por caminhos cada vez mais recônditos na densa floresta e, a certa altura, de súbito, depara com Diana nua, a tomar banho, juntamente com as ninfas, suas companheiras… Quanto ao que é ou não justo, a fábula não se demove. Enfurecida, Diana vinga-se do pobre neto de Cadmo, transformando-o num veado que, posteriormente, diz Ovídio, se surpreendia vendo nas águas os seus cornos. Queria falar, mas não podia … e acaba mesmo por ser devorado pelos próprios cães que o acompanham na caça.
Em termos mais genéricos, é neste enquadramento artístico-cultural, que integra todo um conjunto de questões suscitadas em torno do mito de Actéon e aqui exemplifico com a conhecida obra de Ticiano, que V. G. M parece estar a introduzir o seu gracioso diana no banho. Mesmo ainda antes de o pensarmos equacionando a presença fundamental deste mito em Camões – e em Portugal o mito tinha também forte presença, em testemunhos como os de Sá de Miranda, António Ferreira ou mesmo Duarte Resende (no Cancioneiro Geral) –, o conhecimento da referência de Ticiano é já bastante para que, à partida, sem grandes cuidados interpretativos, esbocemos um sorriso, ao começarmos a ler este poema de V. G. M:
via diana
pelo buraco
da fechadura.
era jacuzzi?
E soltamo-lo de imediato, mesmo se não temos logo presente em plena consciência uma série de aspectos que, na magreza destes versos, indiciam como tudo mudou na vida e na arte. Onde paira aquele lugar recôndito do bosque ovidiano, afastado do conhecimento dos mortais? Isto já para não falar do aspecto originário do mito segundo o qual Actéon avista Diana movido por uma força externa, alheia à sua vontade, até porque bem cedo na história do mito o avistamento de Diana pelo herói passou a ser recriado muitas vezes como um acto deliberado.
Mas mudou também a nossa perspectiva e sensibilidade no tocante à nudez. Se o agrado e o interesse pela nudez de muitos artistas do tempo de Ticiano convivia a par de uma atitude da Igreja com efectivo poder para censurá-la – e não faltam exemplos a que pudesse aludir –, no século XX-XXI, não tendo evidentemente deixado de haver pudor, podemos dizer, com segurança, que, na vida comum, não raro, a nudez fica, eu não diria completamente, mas quase desocultada. Falo evidentemente de tendências. Numa mesma época, há diferenças de sensibilidade, entendimento e práticas. Em todo o caso, a nudez tornou-se muito mais … facilmente avistável e efectivamente vista. E a tal ponto que até um autor como Roland Barthes, nos anos 70, ao referir-se no seu Le plaisir du texte ao movimento do erótico resultante desse ponto cintilante, ocasionalmente descoberto, entre a extremidade da luva e a da manga, se arrisca a que o considerem algo antiquado!
Tendo a nudez passado a ser tão mais susceptível de ser vista e com muito mais facilidade do que foi mesmo para novos Actéones recriados, será oportuno perguntar que ventura seria ainda a deste mito, do ponto de vista da possibilidade da sua recriação, entre finais do século XX e o dealbar do século XXI, portanto num tempo em que o acto supostamente novo de Actéon (avistando a deusa deliberadamente) parece ser, a esta luz, uma rebeldia de menino de coro.
Nesta perspectiva, também o próprio acto de espreitar pelo buraco da fechadura seria já um tanto antiquado…
Este questionamento, dada a evidente mudança de percepção e sensibilidade em relação à nudez, não podia deixar de ser equacionado, mas, em bom rigor, ele não cobre toda a problemática do verdadeiramente engenhoso e do novo trazidos com este poema. Há outros aspectos a ponderar. Além disso, logo à partida, se a mudança de sensibilidade é notória, a verdade é que o desejo de ver o corpo amado também não desapareceu entre nós nem felizmente parece estar em vias de extinção. Por outro lado, se podemos observar tendências de mudança nesta matéria relativamente a tempos passados, também não podemos deixar de contar com o dado importante de que haverá sempre, numa mesma época, diferenças de sensibilidade, de percepção e de comportamentos na sociedade. E a verdade é que, até em termos de moda do vestuário – o que também contribui para a formação de hábitos e tendências de andarmos mais vestidos ou despidos – talvez nunca tenha havido tanta variedade…
Mas há outros dados a ponderar. Logo à partida, o do novo espaço em que aparece a deusa e nos põe de sobreaviso. No nosso imaginário, vemos de imediato uma claridade que desconhecíamos no espaço inicial de Diana, originariamente inserida na zona mais recôndita e densa do bosque. No novo quadro, há uma luminosidade lunar (como convém a Diana), mas inesperada, porque reflectida na espuma, no marulhar da água, nos azulejos e na porcelana de um quarto de banho:
como se a lua
mais perfumada
ali pousasse
na porcelana
enevoada
Com efeito, mesmo em diferentes recriações artísticas do mito presente ou de outros envolvendo banhos e nudez, este não é o tipo de enquadramento que mais facilmente nos vem à memória…
E é mais do que apenas uma graça. Na verdade, mantendo-se sempre no registo leve da graça, este aspecto promove uma importante dessacralização da deusa. O poeta vê a deusa numa rapariga (ou numa mulher nova). Porque … não há outros deuses. Ou então, em outra perspectiva, eles envelheceram, como mostra Teixeira de Pascoaes (O Pobre Tolo), que os vê realmente, envelhecidos, nos que passam pela ponte de S. Gonçalo, em Amarante:
Passa a velha maneta, a quem roubaram
Os dois braços de pedra, inimitáveis…
Ela é Vénus, pois! Mesmo se alguém não a tiver visto no Louvre, a cultura europeia e ocidental dos dois últimos séculos, laborante na memória de muitos, sabe que ela “vive dos braços que lhe faltam”. E o poeta, para cuja sensibilidade os deuses não morreram, sabe bem como eles estão envelhecidos (a sua língua, porventura). “Júpiter ronca ainda nos trovões”!
Diferentemente, porém, V. G. M. encontra-os no brilho de uma rapariga … apetecível, até também porque ele sabe, como Teixeira de Pascoaes sabia, que, originariamente, em tempo mais próximo da criação dos deuses e outras figuras míticas greco-latinas, há qualquer coisa de semelhante a este processo. Acontece, todavia, que eles nos chegam com muitos séculos de permeio e já muito mediados por várias exegeses.
Este é, em termos sintéticos, o enquadramento para qualquer coisa mais que o poeta vem mostrar e sem o que não poderia fazê-lo de forma convincente, quer porque a nova afirmação não dispensa que no poema fique visível como sobre as formulações mais antigas relativas à deusa e às ninfas passaram vários séculos, quer porque, em consequência disso, ela carece também de que fique bem visível a diferença fundamental da humanidade da nova deusa.
Muito em particular, importa ter em mente a passagem dos séculos especificamente sobre uma das formulações camonianas deste mito, onde, a meu ver, V. G. M. parece desejar inscrever a sua nova versão das coisas...
No seu diana no banho há um movimento na formulação do mito de tal modo destoante do habitual que dificilmente passa despercebido. Tudo no poema concorre, desde o início, para mostrar a nudez de Diana e colocá-la no centro do cenário recriado. Este é, antes de mais, o novo empreendimento do poeta. De facto, na pintura, em Ticiano, por exemplo, até aparece bem visível a sua nudez e a das companheiras, mas no quadro do mestre italiano ela não ocupa o centro da tela, sendo mesmo difícil evitarmos que o nosso olhar se detenha sobre o movimento afirmativo de Actéon. No poema de V. G. M., diferentemente, mostrar a nudez de Diana parece ser um verdadeiro empreendimento; note-se, aliás, que o seu Actéon aparece de costas… Com esse alvo é que, desde o início, o poema é posto a funcionar, desde o acto de espreitar pelo buraco da fechadura, passando pela transferência da deusa do seu espaço inicial – recôndito e de densa vegetação – para a, ainda que lunar – claridade de um quarto de banho onde os azulejos e a porcelana ajudam a reflectir o brilho do seu corpo, até à sua diluição entre o marulhar das águas, altura em que os versos se voltam para os meandros espírito de um Actéon “espreitador” e gradualmente os reflexos sobre a espuma do banho vão rareando…
É certo que, ao contrário de muita da pintura alusiva a este mito, a sua Diana não aparece inteiramente nua. De facto, este novo Actéon-poeta deu-se “por servo dela / para cantá-la / ensaboada”! Aliás, neste movimento dos versos a mostrar Diana, ela chega quase a confundir-se com a leveza da água, sobretudo a partir de “marulhava”, cujo sujeito, numa primeira leitura, não fica inteiramente claro se é Diana ou a água. E isto, evidentemente, não por defeito do poema.
Nada disto, porém, invalida a evidência do novo movimento na formulação do mito. Além disso, o poeta que apresenta a seminudez da deusa sob este fino, raro e inusitado véu fá--lo para logo depois, no seu desejo, a despir, retirando-a mesmo da água, como fica claro na estrofe subsequente:
e se pudesse
dar-lhe umas quecas
vezes sem conta
fora de água
Que estaria então por trás desta reviravolta na nova formulação de V. G. M. e sustentaria a sua afirmação? Além do dado óbvio da passagem do tempo que se desprende desta graciosa humana figura feminina e dá a Actéon uma sensibilidade algo diferente (mesmo se não insensível à camoniana ou à de Ticiano e outros), o novo movimento dos versos na apresentação das figuras parece ser dirigido à Écloga dos Faunos (Écloga VII de Camões). Este mito é muito retomado em Camões, sendo até algo diverso o seu funcionamento n’Os Lusíadas[5], mas é mediante uma interpelação a esta écloga, especificamente, conforme ela nos chega, mutilada com a falta de duas oitavas, que, a meu ver, o poeta afirma o seu novo Actéon. Na fala do Sátiro Segundo, a certa altura, há duas oitavas que faltam e que, segundo indicação da edição de 1595 (“Daqui se tiraram duas oitavas”), teriam sido suprimidas, tudo leva a crer, por acção da censura inquisitorial.
O enquadramento das duas oitavas em falta – o que as antecede (“O caso de Acteon, também diria, / em cervo transformado; e milhor fora / que dos olhos perdera a vista escura / que escolher nos galgos sepultura”) e o dos versos que imediatamente lhes sucedem[6]:
Tudo isto Acteon viu na fonte clara
onde a si de improviso em cervo viu; –
faz supor que as águas onde agora ele se vê “de improviso” são as mesmas onde o herói teria avistado Diana. “Tudo isto” referir-se-ia assim ao espectáculo que se lhe apresentava da nudez de Diana (e eventualmente das ninfas, suas companheiras). Como aliás já tem sido notado[7], os versos imediatamente anteriores conteriam, pois, uma descrição de Diana no banho. Ora, e porventura ela seria descrita em termos muito semelhantes àqueles em que Camões descreve Vénus n’Os Lusíadas (II, 36) – quando a deusa se apresenta suplicante diante de Júpiter, em “brandas mostras” tais “Que moveram de um tigre o peito duro” (II, 42, 1-2) –, o que justificaria a censura inquisitorial, que, por milagre, não cortou versos daquela estrofe d’Os Lusíadas.
Nestas circunstâncias, o empreendimento de mostrar a nudez de Diana, que naturalmente se esquiva, transforma-se no de mostrar também a Diana que a Inquisição teria eliminado e nunca poderemos ver nem saber onde paira. Por jogo e graça, o poeta V. G. M. colocar-se-ia na pele do artífice a consertar o poema camoniano. Precisamente porque o movimento da sua composição corre todo no sentido de mostrar a nudez clara e a sua mimosa sensualidade não será talvez despropositado pensarmos – e até também conhecendo a graça e o humor de V. G. M. – num propósito de preenchimento daquela lacuna com os seus versos…
O poeta procederia, pois, de modo semelhante ao do artífice que deixou no restauro da Catedral Nueva de Salamanca uma marca simbólica do seu tempo (1993), com um pequeno astronauta esculpido na “Portada de Ramos”. E, a meu ver, com esta interpelação, o trabalho de V. G. M. vai mais longe. A partir deste conserto gracioso do poema camoniano, o lavrado do novo artesão é também o do arquitecto cujo trabalho de reconstrução se estende aos alicerces de um edifício a carecer de labor. O conserto do poema camoniano por V. G. M. acaba por suavizar nele uma mágoa secular que agora, não desaparecendo completamente – trata-se da reconstrução de um velho edifício –, aparece menos desconcertantemente magoada e não tem já a mesma pesada densidade presente no tom do sujeito camoniano que, no seu canto, “ajudado se via então da mágoa / e da tristeza”, porque estas ninfas, além de serem esquivas, ao contrário das ninfas da Ilha Namorada, “mais industriosas que ligeiras”, têm o seu peito gelado e empedernido. Diferentemente da deusa humana de V. G. M., nas camonianas não há corações humanos. Veja-se mesmo o tão coincidente contraste entre o duro peito das primeiras ninfas, que o Primeiro Sátiro diz terem “peitos de diamante fabricados”, o que é logo secundado pelo Sátiro Segundo em “daqui o frio peito congelastes”, e a humaníssima brandura do peito de Diana em V. G. M.:
belas maminhas
à tona de água.
O antigo infortúnio de Actéon, que em Ovídio constitui o centro do mito (mesmo sendo--lhe necessariamente conexa a figura de Diana) e em Camões se mantém no dilaceramento por uma mágoa que só não é indizível por ser ele um grande poeta e em torno dela ter escrito dos melhores e mais raros versos em língua portuguesa (e tão variados como os do Adamastor narrando o seu infortúnio amoroso, ou os de “Sôbolos Rios”, onde o desejo se funde ou resolve em nostalgia celeste, ou os da Écloga dos Faunos, onde especificamente ocorre a figura de Actéon no remate desta extensa composição que variadamente se vai desdobrando a mostrar o peito duro das ninfas, como é também o de Diana), não só parece agora ser relegado para segundo plano, como até praticamente desaparece nesta irónica composição. E isto não porque uma mágoa singular até não seja estruturante em poemas importantes de V. G. M., mas porque ele parece comprazer-se a dar-lhe uma solução – provisória, como é necessariamente qualquer poema – bem contrastante com o movente estilo da Écloga dos Faunos.
Dir-se-ia até que aquela água de que em “Sôbolos Rios” o rosto do sujeito se vê banhado tem agora inesperado o seu curso num “chape-chape / de mansa vaga” envolvendo a deusa (que aqui e ali se confunde com a água do banho), cuja rima, divergindo da antiga “mágoa”, parece dissolver-se naquele fresco e luminoso “marulhar”.
Se algum vestígio há no poema da antiga mágoa que, como os cães devorando Actéon, dilacerava o poeta, ela aparece talvez, residual, no tom de certa ironia a concluir o poema. De facto, esse Actéon secular “dos próprios cães / inda comido” ainda assoma no poema de V. G. M., mas isso acontece, porque justamente a partir dessa figura é que ele recria o seu Actéon. A esse infeliz ali chegado de outros tempos “inda comido” e sobre o qual o sujeito ainda diz que “logo por dentro / os seus desejos / o devoraram / espreitador”; a esse que corresponde à figura camoniana sobre a qual o Sátiro Segundo diz que “[…] milhor fora / que dos olhos perdera a vista escura / que escolher nos seus galgos sepultura”, e o poeta ainda insere no poema, onde até espreita pelo buraco da fechadura, habilitando-se portanto, no mínimo, a uma completa cegueira; a esse mesmo Actéon é que em diana no banho, já no fim, o poeta alivia do peso do castigo secular e de uma mágoa sustentada na insolubilidade decorrente do paradoxo que enforma o desejo ardente (e, não raro, até “Em várias flamas variamente ardendo”) “que vive do fogo do que não alcança e morre do que abraça”[8], com esta conclusão irónica e porventura não completamente inesperada:
quanto a diana,
não deu por nada,
não o puniu,
não se vingou.
não precisava.
Com efeito, já na estrofe 7 havia indício de que o desfecho traria alguma novidade, pois aqui ficávamos a saber que Actéon “logo se deu / por servo dela / para cantá-la ensaboada”, e que assim mesmo se faz poeta não para cantar algum magoado desconcerto, como frequentemente se vê na lírica camoniana (independentemente de qualquer referência explícita a este mito) e até também não poucas vezes em V. G. M., mas … “para cantá-la / ensaboada”…
O novo Actéon faz-se, pois, poeta para desocultar a nudez de Diana no banho (propósito claro no desdobrar dos versos), e não sem, simultaneamente, ironizar sobre todo um discurso relativo a uma mágoa que, verdadeiramente, não poderia desaparecer por completo dos seus versos graciosos, e isto não só porque a nudez nunca poderia ser inteiramente “des-ocultada” e constituir-se portanto como uma verdadeiro sentido de verdade que o poeta poderia querer fazer caber dentro dos seus versos – também por isso (ainda que não só) ele a canta ensaboada –, mas porque podendo eles reter a ironia, esta, como ironia que é, fica sempre aquém daquilo sobre que se enforma e … deseja. Ou deixaria Actéon de ser Actéon e V. G. M. de ser poeta.
III.
Este é um poema que V. G. M. valorizou. Ao fazê-lo, percebemos que dá importância ao fazer da poesia, pois é à palavra “poemas” que associa o adjectivo “importantes”, desviando-o ligeiramente do sentido da pergunta. Se o tema do amor é importante, não menos o é a arte do artesão que sobre ele labora, afinal não menos tema que o amor em V. G. M. A poesia é mais do que um desabafo, desinvestido de qualquer trabalho sobre a língua. É por isso que ela cria verdadeiramente um novo objecto: um novo sentido e coerência sobre o que parecia desconcertante e agora – provisoriamente – faz sentido, no novo poema decorrente de um “trabalhar o mundo, as relações de vizinhança / entre os seres e as coisas, / no intervalo exacto da sua infelicidade constritiva…” (“ars poetica”, in laocoonte, rimas várias, andamentos graves) e se forma portanto de novas junções de palavras, novas assonâncias, novas proximidades, numa horaciana callida iunctura, de que, por vezes, se forma um objecto móvel, de fronteiras extravasantes, em direcção a outra coisa já…
Este é apenas um poema importante na sua obra. E apenas um, apenas porque, por feliz – portanto fértil – ironia, na sua poesia, parece caber um mundo, pois ela é muito variada, e tanto que, para quem a lê, quase poderia responder ao desejo, não menos intenso, da sua pergunta:
uma vez perguntei como meter o mundo
num poema, nem aprendi, nem soube
se alguém tinha resposta em muitos anos.
hoje entendo melhor as minhas dúvidas.
São tantos outros, vários, tantos mais…
[1] V. G. M., “O remorso”, Diário de Notícias, 11-12-2013.
[2] V. G. M., Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa (1988), 2009, pp. 28-29.
[3] Como qualquer jovem, V. G. M. terá passado por uma fase em que gostaria e precisaria de mostrar as suas leituras. Aliás ele refere-se a isso numa das suas últimas entrevistas (Ana Sousa Dias, Ler, Janeiro de 2014, pp. 28-39), mas isto é o que é normal em qualquer jovem que começa a escrever e já tem algumas leituras importantes.
[4] Visão, 20-3-2014. Sublinhado meu.
[5] O mito de Actéon, essencial em Camões, tem estudos e leituras importantes, de que não posso deixar de salientar, até pela importância que têm na minha própria reflexão, as de: Américo da Costa Ramalho, “O mito de Actéon em Camões”, 1968 (apud A. C. Ramalho, Estudos Camonianos, INIC, Coimbra, 1980, pp. 45-72; Eduardo Lourenço, “Camões-Actéon”, (1970), apud E. Lourenço, Poesia e Metafísica, Lisboa, 2002, pp. 17-35; V. M. Aguiar e Silva, “O mito de Actéon como alegoria e como símbolo na poesia de Camões (1987), apud V. M. Aguiar e Silva, Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, 1999, pp. 155-160; sem esquecer, antes destas, as leituras de Faria e Sousa. Recentemente tive ocasião de me referir à ocorrência de Actéon n’Os Lusíadas em Maria Mafalda Viana, “A Ilha Namorada de Camões…”, Revista Portuguesa de História do Livro, Lisboa, 2016, pp. 171-210 (há um nexo que formam as suas três ocorrências no poema: II, 35; IX, 26; IX, 63) (pags. 188-189; 202-205 em particular).
[6] Uso edição de A. J. Costa Pimpão: Luís de Camões, Rimas, Coimbra, 1994: pp. 366-379.
[7] A. da Costa Ramalho, op. cit.
[8] Socorro-me da formulação de Eduardo Lourenço, op. cit.